domingo, 17 de julho de 2011

Não podemos também atravancar as pesquisas qualitativas

Sapatos 38 para todos

Resolução brasileira sobre a ética em pesquisas com seres humanos prevê as mesmas regras para campos distintos das ciências. Pesquisadores das áreas humanas e sociais se organizam para alterá-la antes que se transforme em lei.
Por: Carla Almeida
Publicado em 15/07/2011 | Atualizado em 15/07/2011
Sapatos 38 para todos
As ciências humanas e sociais têm objetivos, metodologias e tradições diferentes das ciências biomédicas, por isso requerem diretrizes éticas distintas. (fotos: Governo MG – CC BY-SA 2.0/Armando Anache – CC BY-NC-SA 2.0)
Autonomia, não maleficência, beneficência e justiça são os quatro princípios básicos da bioética no mundo. Eles também norteiam o marco legal brasileiro sobre ética em pesquisas com seres humanos, com o que a comunidade científica está de pleno acordo.

No entanto, a resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, o tal marco legal, está longe de ser consensual. Para pesquisadores das áreas humanas e sociais, ela mira um modelo muito estreito de pesquisa experimental em saúde, e, portanto, não leva em consideração as especificidades dos estudos em seus campos.
A resolução nº 196/96 mira um modelo muito estreito de pesquisa experimental em saúde
“O modelo de pesquisa que está subjacente à resolução 196 nem sempre se adéqua e é justificável quando se consideram os diferentes modos de produção do conhecimento”, afirma a psicóloga Selma Leitão Santos, da Universidade Federal de Pernambuco.
Em nome da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia, que vem promovendo discussões sobre a regulamentação da ética em pesquisa no país, Santos abriu uma mesa-redonda sobre o tema nessa quarta-feira (13/7) na reunião da SBPC. O movimento organizado pela entidade coloca em xeque justamente a universalidade da resolução 196.
No momento, o que mais preocupa os pesquisadores engajados no movimento é a tramitação no Congresso de um projeto de lei (PLS 78/2006) que “estabelece punições para as violações às diretrizes e normas concernentes às pesquisas que envolvem seres humanos” e “visa transformar a resolução, da forma que está, em lei”.
O projeto já foi aprovado por duas comissões do Senado e encontra-se agora em análise na Comissão de Educação, Cultura e Esporte da casa. “Para nós, o avanço na tramitação desse projeto de lei é um problema mais do que solução, porque se calca numa situação ainda não suficientemente resolvida entre as diferentes áreas do conhecimento”, explicou Santos.

Distintas tradições

Uma série de documentos internacionais inspirou a resolução 196/96, como o Código de Nuremberg e as declarações dos direitos humanos e a de Helsinque. Mas o texto propriamente dito se apoia principalmente nas “Diretrizes éticas internacionais para pesquisas biomédicas envolvendo seres humanos” e amplia o conceito de pesquisa adotado no documento para estudos em todas as áreas do conhecimento.
“Surgem daí uma série de problemas”, desabafou a psicóloga Iara Coelho Zito Guerriero, coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, que também participou da mesa-redonda. “Quando se adota a definição de pesquisa biomédica e a amplia para qualquer área do conhecimento, isso pode não ser adequado, que é o que temos visto na prática nos CEPs.”
Guerriero lembrou que todo projeto de pesquisa no Brasil precisa passar pelo crivo de um CEP – hoje há cerca de 600 no país. No processo de submissão, o coordenador de um estudo qualitativo em ciências sociais, por exemplo, tem que seguir regras e partir de pressupostos incompatíveis com os seus objetivos e metodologia.
Ele tem que mostrar, por exemplo, que sua pesquisa tem “possibilidades concretas de responder a incertezas”, está “fundamentada na experimentação prévia realizada em laboratórios, animais ou em outros fatos científicos” e emprega “métodos adequados”. Além disso, deve descrever as “hipóteses a serem testadas”.
Camundongo de laboratório
A resolução nº 196/96, que trata da ética em pesquisas com seres humanos no Brasil, adota preceitos restritos à área biomédica, como a fundamentação na experimentação prévia realizada em laboratórios, animais ou outros fatos científicos. (foto: Rick Eh/ Flickr – CC BY-NC-ND 2.0)
Por outro lado, as especificidades da pesquisa qualitativa não são levadas em conta, como o fato de ter foco voltado para melhorar as condições de vida dos voluntários e para fortalecer sua atuação nas comunidades em que vivem. “Estamos falando de tradições de pesquisa diferentes, de paradigmas de ciência distintos”, ressaltou a psicóloga.
Essas e outras incompatibilidades, segundo Guerriero – e membros da plateia que aproveitaram para compartilhar percalços semelhantes – acabam dificultando, atrasando e muitas vezes até inviabilizando o desenvolvimento do estudo.

Exemplo do norte

Guerriero vê na experiência canadense um exemplo de como é possível resolver o impasse. O país lançou em 1998 diretrizes para ética em pesquisas com seres humanos tão estreitas quanto as adotadas na resolução brasileira.
A experiência canadense é um exemplo de como é possível resolver o impasse
Assim como no Brasil, os pesquisadores das áreas de ciências humanas e sociais ficaram extremamente insatisfeitos. Eles constituíram um grupo de trabalho e passaram cerca de seis anos promovendo discussões, elaborando documentos e fazendo consultas públicas pelo país.
Resultado: a nova versão das diretrizes canadenses inclui um capítulo específico sobre a pesquisa qualitativa.
“Temos 13 resoluções vigentes no país [12 são complementares à 196/96] sobre ética em pesquisa com seres humanos e achamos plenamente possível criar uma 14ª para contemplar as pesquisas em ciências humanas e sociais”, concluiu Guerriero.   

Carla Almeida
Ciência Hoje On-line

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